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Salvador Dali, Buried woman with shadow
Em Junho deixo uma lista tendo em conta um outro livro de George Steiner, que li em Janeiro deste ano. "Dez Razões (Possíveis) Para a Tristeza do Pensamento" dá-nos a perspectiva sumária de que existe uma tristeza nuclear e necessária da qual não conseguimos escapar. Nesta tristeza assentará a nossa cognição e consciência, visão em que o pensar será ato de uma melancolia perene. O apelo pelo absoluto, que já referenciei aqui, também estabelece-se nas reminiscências deste pensamento necessariamente melancólico, imbuído no surgimento do ser. George Steiner dá-nos 10 razões para a tristeza do pensamento, e para cada uma delas além de resumir a ideia, 'chutarei' um livro:
1 - O pensamento tem um centro inviolável, ouvi-lo é ouvir a dúvida e frustração;
A Confissão de Lúcio, Mário de Sá-Carneiro: Talvez uma das maiores obras da literatura portuguesa e, quanto a mim, não devidamente valorizada. Labiríntica é a confissão de Lúcio que remete o leitor a um percurso até ao âmago do ser. O suicídio e o anormal chegam numa narrativa em que a loucura é estabelecida como hipótese nunca adulterando a verdade. Este centro nuclear de Lúcio é dúbio, frustrado, porque ele ouve-se.
2 - O pensamento vulgar é uma empresa confusa e amadora, a causa da melancolia indestrutível;
Madame Bovary, Gustave Flaubert: É tido como o primeiro dos romances realistas. Bovary é uma mulher vítima da sua própria empresa. Deu origem ao conceito de bovarismo, a insatisfação crónica, o suceder de situações não reflectidas, a confusão. A vulgaridade, o fim a que pode levar.
3 - Pensar é dos actos mais comuns, repetitivos e gastos, razões para uma tristeza inseparável;
Todo o Mundo, Philip Roth: O homem de Philip Roth está tudo menos morto, e pensar é um acto fulcral no seu tecer narrativo. O que foi a sua vida, o ser adorado e desprezado pelos diferentes filhos, invejoso do próprio irmão, acaba por concluir que é o que não quis. Na recta final ainda a pensa, logo sofre. Percebe-se melhor no título original "Everyman".
4 - A língua aspira à autonomia e por outro lado à procura interior da verdade;
Não é Meia Noite Quem Quer, António Lobo Antunes: Um dos meus livros favoritos do António. Entre personagens sem nomes uma mulher regressa à casa onde cresceu. Num repente toda a vida está de novo lá, na casa agora abandonada, e quando a vida acontece morrer torna-se acessório. O uso da língua além de qualquer redoma, e de magistral que é, torna-se encantatório neste romance. Trata do apelo permanente a entendermos aquilo que as palavras não podem traduzir. Ata titi ata a tia atou
5 - A inabilidade de condensar o nosso ser mental, uma actividade inútil;
O Idiota, Fiódor Dostoiévski: O Príncipe Míchkin ainda hoje prevalece como uma imagem moderna da ética cristã. Quanto a mim vai além disso, Míchkin não se consegue condensar. A existência de cada um limita-se a ser e portanto ilimitada em si. Abnegação, bondade, não vale a pena tentar atar as pontas soltas do que somos. Um dos meus livros favoritos e pelo seu final talvez se entenda melhor o porquê de estar aqui. Há camadas e nem todos os leitores as observam neste livro.
6 - Ter esperança além de tudo, o flagelo do pensamento sobre a consequência dos actos;
Todos os Nomes, José Saramago: O Sr. José, escriturário no cartório de registo civil, está entediado e em busca de distracção. Colecciona então recortes de pessoas famosas, chegando à conclusão que estes recortes de famosos são todos iguais. Começa a prestar atenção nas pessoas desconhecidas, e sem querer inicia uma aventura sem fim na procura do outro. Porque somos mais do que um papel, e mesmo no infortúnio a resposta talvez seja apenas procurar. Acho que é o romance de Saramago menos óbvio, seja pela inclusão de vários mitos, pela subtileza do enunciar e dizer sem se dizer, Saramago nem sempre o foi capaz de fazer. Sendo este o mais próximo de um livro total, de Tempo e Espaço, onde há esperança além de tudo. Ler e entender.
7 - O pensamento esconde tanto ou mais do que revela;
A Consciência de Zeno, Italo Svevo: Zeno Cosini cria um diário como instrumento de apoio à sua terapia, faz psicanálise para parar de fumar. Neste diário iremos ler as suas mentiras e desvios, tornando-se esta leitura dolorosa pelo sofrimento da personagem, o que esconde por trás do que revela. Uma vida dupla contaminada pela inacção, um ser que parecendo implacável é na verdade só, com inúmeros sonhos, fantasias, e uma ânsia de felicidade impossível.
8 - O interior de outro ser humano é inacessível, a qualquer luz ou amor;
O Estrangeiro, Albert Camus: A mãe de Mersault morreu, e quando este regressa do funeral a personagem principal comete homicídio, vítima do que diz ser um golpe de Sol. O absurdo do destino de Mersault instiga várias questões existenciais, contudo a personagem é sempre inacessível ao leitor, estrangeiro como o próprio título, não há como o justificar. Mersault é hermético e por isso gerador de pensamento que promove angústia em relação a si.
9 - Para o génio não existe democracia, só injustiça e fardo;
Em Busca do Tempo Perdido, Marcel Proust: Pelo pensamento Marcel Proust quis fugir ao Tempo, elaborando uma das maiores obras literárias de todos os tempos. Talvez o livro que escolho a ter um só favorito a escolher. Esta busca é realizada no consciente e inconsciente da mente, produto de um génio que não se viu atado e trabalhou de forma obstinada. Conhecer "Em Busca do Tempo Perdido" é além de vida, abraçar o génio de Proust, o fardo de uma obra-prima.
10 - O pensamento torna o Homem estranho em relação a si e ao mundo;
Stranger in a Strange Land, Robert Heinlein: Valentine Michael Smith é tido como um ser humano superior nascido em Marte, sendo os seus pais parte dos primeiros colonos do planeta. Smith visitará a Terra e as suas peculiaridades de Super Homem, ou de homem que nasceu em Marte, acarretam uma série de inadaptações enquanto estranho na Terra. Uma mensagem de amor atada a Smith, visto como uma reinterpretação de Promoteu ou a materialização humana do arcanjo Miguel. Mais uma constatação de que não somos daqui.